segunda-feira

Revista Raiz

Muito além do preto e branco
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Por Revista RAIZ.
30 de novembro de 2006

Engajados em produções de filmes de cunho social, entrevista com os idealizadores do filme Família Alcântara.

Por Fábio Rayel

O documentário conta a história da família remanescente de escravos africanos no município de João Monlevade, em Minas Gerais, símbolo de resistência cultural. Um belo coral de vozes, formado por 45 vozes de todas as gerações, que encantam o público ao som de músicas religiosas, espirituais e blues. “Sempre que assisto o filme me emociono em alguma parte diferente”, diz Daniel Sola Santiago diretor do longa-metragem que se aprofunda nessa história de mais 200 anos. Ele começou a carreira como office-boy, passou pela publicidade, migrou para a televisão e se depararou com a turma de peso do globo repórter dos anos 80, sua escola de documentário. Na produção do filme, Daniel contou com a parceira de sangue, Lílian Sola Santiago. Os irmãos, em 1998 estavam à procura de títulos sobre a temática afro-brasileira quando viram uma matéria sobre a Família Alcântara. A dupla não hesitou em investigar o caso. Iniciaram a descoberta. “No começo era pra ser um curta-metragem, mas conforme a pesquisa ganhou força, vimos que um curta era muito pequeno para a tamanha necessidade de publicar todo o material”, diz Lílian. Em entrevista ao portal RAIZ., os sócios da DSS produções - voltada a trabalhos sobre a temática afro -, contam como é árdua a luta para fazer cinema independente no país da “minoria branca”. Engajados em produções cinematográficas de cunho social, os dois falam sobre o preconceito na sociedade brasileira, os estereótipos do cinema e a falta de ética que há por trás das câmeras. De porta em porta, a dupla luta para divulgar a Família Alcântara e encontrar o seu público, e afirmam “os negros precisam começar a assinar o cheque!”.

Qual é a tática para distribuir o filme?
Daniel Sola Santiago: De porta em porta, estamos atrás de salas interessadas em passar o documentário. É uma luta e tanto. Nós procuramos os distribuidores, mas se não conseguirmos parcerias, nós mesmos aprenderemos a distribuir. É sempre assim. Nós somos os produtores, os exibidores, os divulgadores É importante fazermos isso, não só pra nós mas para a Família Alcântara também. Eles têm outros trabalhos, é necessário que eles valorizem o lado artístico também.

Vocês têm o objetivo em despertar o público de alguma forma?
Lílian Sola Santiago: Primeiro, nós fizemos o filme para nós. Em uma forma de ver os negros não estereotipada, não folclórica e que contasse essa história. O filme é único nesse sentido, porque não existem outros que deram esse tratamento. Normalmente, eles não nomeiam as pessoas que estão falando, sempre é uma comunidade. Nunca houve aprofundamento nas histórias individuais. Nós tivemos um cuidado para fazer as pessoas se sentiram à vontade nos depoimentos, estar com a sua melhor roupa, e não é simplesmente “cozinha aí, enquanto eu filmo!”, como é feito no Brasil. Por um lado, a população negra pode ver e sentir a maneira positiva que retratamos no filme, e para a população em geral é uma oportunidade única de sentir como a cultura negra faz parte da cultura brasileira, muito além de samba e candomblé.


Você acham que muitos cineastas ainda se apropriam da favela em seus filmes?
Daniel: Sim. É uma falta de respeito. O nosso documentário pressupõe a questão ética. Quando você filma acaba compartilhando com a vida da pessoa. Há oito anos estamos envolvidos com a Família Alcântara e dentre esse tempo sempre houve uma amizade recíproca. Não tem como não voltar lá. A exposição de uma pessoa pode tanto ajudá-las como pode derrubá-las, dependendo da forma que você se coloca. A minha escola de documentário é de pessoas que tinham a ética em primeiro plano. Não se rouba imagem, tudo é concedido. As pessoas precisam permitir. Essa história de colocar nome irreal nessas pessoas, misturar ficção científica, com realidade do lugar, complica a situação das pessoas que ficam lá.

Por exemplo o longa Cidade de Deus?
Daniel: Exatamente.

E o que os difere?
Daniel: Nós estamos documentando a vida dos jovens nos bairros de Brasilândia e Cidade de Tiradentes, em São Paulo, um projeto da prefeitura chamado História dos Bairros. Nele vemos todos os dias como a juventude passa dificuldades nos lugares onde os índices de violência são altíssimos, e como todas as referências que são passadas a respeito da cor negra sempre é negativa. Eles não têm em quem se espelhar. Daí eu pergunto: você vai fazer um documentário nesse lugar e pretende enfatizar mais esses problemas? Mais do mesmo? Ou dar voz as pessoas que querem mudar essa realidade? É uma questão ética e política. Lá existem pessoas que não são bandidos. Muitos acordam todo dia de bem cedo, ficam horas no ônibus, trabalham, ganham pouco e ainda assim sonham por comunidade melhor Nesse sentido é importante entender a periferia, refletir sobre ela. As pessoas têm que tomar muito cuidado para não passar informações que não correspondem aos fatos.

O estereótipo?
Lilian: Sim. Representações do grupo minoritário acompanham a história de cinema desde que ele se conhece como tal. Negros são estereótipos de ladrão, bandido e pessoas perigosas. Imagine que isso é feito há mais de100 anos... Isso acabou se tornando um legado terrível na população, um genocídio cultural. Faz mal pra alma das pessoas. Eu vejo a maioria dos meninos da Cidade Tiradentes usando aqueles gorrinho de bandido, e eles acabam parecendo com eles. E quando ele vai ter contato em outras legiões da cidade, os outros já sabem que ele vem daquele jeito. Então ele pensa: “Não vou naquela faculdade que aquilo não é pra mim, eu sou do gueto”. Isso é muito ruim para o país. São pessoas muito criativas com um grande potencial desperdiçado, e por não haver espaço, esse potencial acaba sendo usado para outra coisa.

O escritor Férrez disse em entrevista a revista RAIZ. que o que falta no Brasil é negros cuidando de seus próprios negócios. O que nos difere dos Estados Unidos, onde eles têm gravadora e produtora...
Lilian: Isso se dá ao modo como foi feito a libertação dos escravos. Enquanto nos Estados Unidos eles ganharam uma mula e 14 acres, (Forty Acres and A Mule) – o nome da produtora do diretor Spike Lee, aqui no Brasil, eles saíram com uma mão na frente a outra atrás. Povoaram os morros porque não tinham a onde ir. Nós temos um déficit muito grande. Não adianta ignorar, quando uma pessoa não tem o que comer, ela não tem força para lutar contra nada. Ela só quer saber doprato de comida do amanhã.

Faltam incentivos para o cinema afro-brasileiro?
Daniel: A temática afro-brasileira começou a ser discutida somente agora. Só existem 10 diretores negros do Brasil. Nós procuramos patrocinadores nos mesmos lugares onde todos vão. O balcão é sempre o mesmo. Nós somos craques em bater em porta de empresa. Já fomos em várias propor parcerias, e não conseguimos nada. Vai ser muito difícil conseguir salas para exibir o filme, mas vamos apostar no dvd, que pode difundi-lo em diversos lugares.
Lilian: O cinema ainda é um lugar de elite e nós queremos passar o filme em lugares que a população tenha acesso. Estamos levando o documentário em bairros na periferia, já o exibimos em algumas escolas públicos, e engraçado é que esse público não contabilizado como público de cinema. Só constatam os que têm dinheiro para pagar o ingresso. Oficialmente, nós até podemos ter uma performance horrível, mas o filme já foi assistido por mais de 3 mil pessoas, extra-oficial. Eu acho que deveria existir cotas para os filmes afro-descendentes, é única maneira de mudar esse quadro. Os negros estão fora do ciclo corporativista do capitalismo. Não freqüentam as festas onde as minorias trocam favores e pedem recursos. Tudo depende dessas relações de amizade que os negros não encontram. Precisa haver cotas para aumentar o número de filmes diferentes dessa visão majoritária que obtém recursos muito mais facilmente.

A sociedade tem uma dívida com os negros?
Daniel: Não em dinheiro, mas culturalmente sim. O que fizeram com a cultura afro? Destruíram. Eles impuseram suas culturas perante as dos negros, sem a mínima tolerância.
Lilian: É uma facada em si mesmo. A globalização que na verdade só trouxe coisas da Europa e Estados Unidos foi extremamente ruim para um país onde 50% da população é negra e pobre. O Brasil não se vê, não se considera e por isso sofre de auto-estima. Nós temos uma ligação fortíssima com a África, ela tem um peso enorme sobre nós, mas não sabemos nada sobre ela. Por exemplo, nós sabemos que a Itália tem uma cultura diferente da França, que é diferente da Inglaterra. E sobre a África? A população não sabe dizer sequer um nome de algum país. Muitos problemas da auto-estima do Brasil estão ligados à discriminação racial.

Como vocês analisam a questão das cotas nas universidades federais?
Daniel: As cotas são só um band-aid para as questões afirmativas, para resolver algumas questões práticas. E já está provado que os alunos beneficiados estão rendendo mais que os outros. Isso é significativo. O discurso contra as cotas que argumenta que todos devem entrar pelo mesmo gargalo é hipócrita. “Agora todo mundo é igual”. Na hora que eu demoro duas horas e meia no ônibus pra chegar em casa, ninguém quer!

Culturalmente vocês acham os brancos se apropriaram das invenções dos negros?
Lilian:
O Elvis Presley é o símbolo desta pratica.
Daniel: A música do Cartola é outro exemplo. Ele trocava uma música por meia dúzia de cerveja. Quer dizer, o samba faz muito sucesso, as gravadoras ganharam dinheiro, mas o sambista ta na devendo pra todo mundo na praça. Os efeitos da escravidão são muito fortes ainda.

Hipocrisia....
Daniel: Claro que sim. Os brancos recebem heranças e eu só tenho dívidas.

Há preconceito do negro para o negro?
Lilian: Sim. De tanto martelarem os estereótipos negativos sobre eles, o preconceito acaba atingindo entre os próprios. Existe uma pesquisa que procurou evidenciar o quanto as pessoas conseguem diferenciar traços nos negros e brancos e ela prova que você consegue diferenciar 10 vezes mais as feições dos brancos a dos negros. Por quê? De tanto você ver brancos em evidencia, na televisão seu olhar acaba se adaptando, e o negro, ou japonês acaba se tornando todos iguais. O próprio negro diferencia melhor um branco. Isso se deve ao modo como o branco sempre foi abordado como padrão de ser humano. Então, as pessoas querem embranquecer, alisar o cabelo, sofrem de auto-estima, não se auto valorizam. É devastador.

SERVIÇO

Filme Família Alcântara
Local: HSBC Belas Artes
Endereço: Rua da Consolação, 2.423
Telefone: (11) 3258 4092
Horário: 14h
Sala: Carmen Miranda – sala 5
Preços: Inteira: de R$ 8,00 a R$ 14,00
Meia: de R$ 4,00 a R$ 7,00
Classificação: Livre

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