domingo

REFLEXÕES DE UMA SUPEROUTRA


 Cartaz do Filme de Sarraceni (1980), minha primeira participação no cinema 

"Dom Quixote aproximou-se dos moinhos e com pensamento em sua adorada Dulcinéia de Toboso, á qual dedicava suas façanhas , arremeteu de lança em riste contra o primeiro moinho. O vento ficou mais forte e lançou o cavaleiro para longe. Sancho socorreu-o e reafirmou que eram apenas moinhos. Dom Quixote, respondeu que era Frestão, quem tinha transformado os gigantes em moinhos." (Trecho do livro "Dom Quixote de la Mancha", de Miguel de Cervantes)

Dedicar-se a fazer filmes no Brasil é uma atividade que em muito se assemelha às investidas do personagem Dom Quixote, de Cervantes contra os moinhos de vento, que ele julgava ser gigantes. O cineasta-autor, marcado por essa dualidade de ser alguém com o pensamento no céu mas preso à terra, à dura realidade do dia-a-dia da produção cultural, repleta de signos trocados o faz, por vezes, duvidar de sua própria sanidade mental.
Um dos principais historiadores do cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes, intelectual que criou o curso de cinema na Universidade de Brasília e um dos primeiros professores do curso de cinema da Universidade de São Paulo, disse uma vez: "não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro" (Cinema, trajetória no subdesenvolvimento, p. 90).
Realmente gostaria de saber o que faz uma pessoa se dedicar à essa inglória batalha, de fazer filmes em lugares marcados pelo subdesenvolvimento, num mundo hegemonicamente tomado pelas imagens provindas dos Estados Unidos, seu star system, sua estrutura megalomônica de distribuição e promoção de imagens. Até porque, eu mesma sou uma delas e talvez, se tivesse essa resposta, poderia começar a me curar dessa doença, virar as costas aos moinhos e cuidar da minha própria vida. Mas que vida seria essa? Quem seria a "Superoutra" no meu caso? Não me ocorre nada, porque só tenho essa vida mesmo e, desde que nasci, estive às voltas com o universo cinematográfico e audiovisual. 

Cena do filme "O SuperOutro", de Edgard Navarro Filho (1989)

Sou a filha mais nova de uma família grande. Meu pai, que era motorista e professor de alfabetização de adultos, insuflou o interesse pela cultura em seus filhos, de tal forma que, todos nós, nos dedicamos ao fazer cultural e ao magistério, ou ambas as coisas, de uma forma ou de outra. Quando era motorista de uma grande empresa publicitária brasileira, ainda na década de 60 - a Standard, deu um jeito para que seus filhos fossem trabalhar na agência como estagiários nas áreas em que apresentavam mais aptidão. Um dos meus irmãos se tornou diretor de arte, hoje artista plástico, outro, já falecido, foi para a área de redação, e outro se tornou produtor e diretor. Eu nasci na década de 70, e ainda criança, visitava sets de filmagem, brincava nos corredores da televisão Tupi e vivia num ambiente cercada por intelectuais e comunicadores.
No início da década de 80 ocorreu um pequeno fato que me marcou profundamente, e que talvez tenha definido os rumos que minha vida tomou. A convite de meu irmão Daniel, que era assistente de produção à época, participei como figurante do filme "Ao sul do meu corpo", de Paulo César Sarraceni, coincidentemente um roteiro baseado num conto de Paulo Emílio Sales Gomes. Era um filme de época, e minha participação era ser "uma menina que passava", reconstituindo a imagem de uma fotografia do final da década de 30. Na semana de preparação, ficava olhando aquela foto por horas - eu ia representar uma pessoa que poderia ja ter morrido, de outro tempo, e aquilo me impressionou bastante. O figurino reproduzia exatamente a foto - uma roupa de colegial. No dia da filmagem, eu passei toda a manhã subindo e desendo uma escada. No intervalo para o almoço, toda equipe se sentou à mesa improvisada, que era na verdade uma prancha de madeira sobre cavaletes. A atriz principal, Ana Maria Nascimento, maquiada e vestida com o figurino de época, e que antes eu apenas tinha visto falando o texto severo e contido da cena, expressava-se com liberdade entre os eletricistas e maquinistas ("a turma da pesada", como são chamados), e de repente soltou um sonoro palavrão. Ao invés dos homens presentes a repreenderem, como meu pai fazia comigo em casa, todos riram. Achei aquela cena linda, e lembro que pensei: "é isso o que eu quero fazer! Quando crescer quero trabalhar com cinema, onde a gente viaja no tempo sem o pó de pirlimpimpim, e a mulher pode ser linda e falar palavrão".
Realizado ainda no período da ditadura militar, o filme teve enormes dificuldades em ser liberado pela censura. Quando estreou enfim, como era uma criança, não pude ir à pré-estréia. Lembro da minha frustração em não poder assistir ao filme...
Anos se passaram, e quando estava na idade de ingressar no mercado de trabalho, a Embrafilme, empresa estatal que fomentava a produção e distribuição de filmes brasileiros, inclusive "Ao sul do meu corpo", havia sido fechada pelo governo Collor, e a produção cinematográfica brasileira foi abruptamente interrompida.
Influenciada pela militância no movimento estudantil secundarista, com a petulância que é comum aos muito jovens, resolvi que deveria me preparar para ser Ministra da Cultura, para implementar leis que fizessem com que a produção cinematográfica brasileira voltasse a existir. Assim, quem sabe, um dia poderia fazer filmes.
Ao invés de querer estudar cinema, área em que já atuava como assistente de produção de filmes publicitários, tentei por anos ingressar no curso de Administração Pública, muito concorrido à época, em vão. No cursinho preparatório um professor destacou minha vocação para o estudo da História, e me incentivou a fazer esse curso superior, ao invés de Administração, e foi o que fiz.
Ingressei na Faculdade de História da Universidade de São Paulo em 1993, mesmo ano em que foi promulgada a Lei do Audiovisual, que restabeleceu a produção cinematográfica nacional – que bom que não precisei ser Ministra da Cultura para isso, o que provavelmente eu jamais seria, afinal de contas, Ministro é um cargo político e não de carreira.
No ano seguinte, já estava participando da equipe do filme "Os Matadores" de Beto Brant, como assistente de produção e, desde então, não parei mais. Lá se vão mais de quinze anos dedicados à produção, realização e ao ensino audiovisual, com muitos altos e baixos - num dia a gente está numa festa num dos maiores festivais de cinema do mundo, no outro tem que se virar para pagar a conta de telefone. Haja coração!
Este ano estou ingressando numa grande instituição de ensino, como professora-cineasta, para ministrar aulas de roteiro, produção e direção. Uma nova etapa na vida, um novo desafio. Agora, terei que dar aulas todas as noites, e durante o dia vou me dividir entre o preparo das aulas e meus projetos pessoais. Não estarei presente em todas as exibições de filmes durante a ESPELHO ATLÂNTICO – Mostra de Cinema da África e da Diáspora, e as gravações e filmagens terão que ser planejadas para o período das férias. Mas estou feliz, creio que assim vou poder me organizar melhor e viabilizar projetos com mais qualidade, já que não vou depender exclusivamente deles para viver. Dom Quixote, nesse caso, depõe as armas e, sem abandonar seus sonhos, vai procurar realizá-los de forma mais tranquila e organizada. Lá vamos nós para uma outra etapa... E que venham mais e melhores filmes!


 

2 comentários:

  1. Ai, adorei essa reflexão, Lilian!
    Fico muito feliz de as coisas terem dado certo e desejo de coração que esse caminho traga muitas alegrias e desafios que te façam crescer. Boa sorte!
    E sim, fazer filmes nas férias é o que há!! hehe..
    Beijos,
    Ariane

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  2. linda Lilian,

    vá cavaleira, ser mestra na vida, pois mestra da vida vc. já provou que é. Nunca perca os moinhos de vista, pois são eles que nos mostram a reta que não chega nunca, pra que a gente nunca pare de sonhar.
    Ensinar e fazer ficam muito bons quando são caminhos que se cruzam. Aproveite sua nova tarefa, pois os alunos certamente aproveitarão muito.
    grande beijo,

    Marília Franco

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